o primeiro nó: a problemática, complexidade
AS CIDADES E O NOME
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Irene é a cidade que se vê na extremidade do planalto na hora em que as suas luzes
se acendem e permitem distinguir no horizonte, quando ar está límpido, o núcleo do povoado:
os lugares onde há maior concentração de janelas, onde a cidade rareia em vielas mal
iluminadas, onde se acumulam sombras jardins, onde se erguem torres com fogos de artifício;
e, se o entardecer é brumoso, uma claridade anuviada infla-se como uma esponja leitosa aos
pés da enseada. Os viajantes do planalto, os pastores que transumam os armentos,
os passarinheiros que vigiam as redes, os eremitas que colhem raízes, todos olham para
baixo e falam de Irene. Às vezes, o vento traz uma música de bumbos e trompas,
o crepitar de morteiros na iluminação de uma festa; às vezes, o alarido da metralhadora,
a explosão de um paiol de pólvora no céu amarelado dos incêndios ateados durante a
guerra civil. Os que olham de lá de cima fazem conjeturas sobre o que está acontecendo
na cidade, perguntam-se se encontrar-se em Irene naquela tarde seria bom ou ruim.
Não que tenham intenção de ir - e, de qualquer modo, estradas que descem ao vale
são ruins - mas Irene magnetiza olhares e pensamentos de quem está lá no alto.
A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como é Irene vista de dentro.
E Marco não pode fazê-lo: não conseguiu saber qual é a cidade que os
moradores do planalto chamam de Irene; por outro lado, não importa:
vista de dentro, seria uma outra cidade;
Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se se aproxima dela.
A cidade de quem passa sem entrar é uma;
é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali;
uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez,
outra é a que se abandona para nunca mais retornar;
cada uma merece um nome diferente;
talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes;
talvez eu só tenha falado de
Irene.
as cidades invisíveis, p114 115
urb a n i s . . .
Cada cidade um flash, um conto, um jeito e uma história. Cada cidade uns flashes, vários contos, muitos jeitos, um monte de estórias. Tudo cabe e acontece ao mesmo tempo em cada cidade. De diferentes maneiras em cada cidade, da mesma maneira em várias cidades. Como contar sobre uma cidade, sobre cada cidade? Qual aspecto, quais aspectos, mais descrevem, importam, revelam? Essa questão pode ficar ainda mais difícil: o que, e como, estudar em uma cidade? Todo conto, entretanto, implica uma escolha de um pacote de premissas, uma abordagem, uma narrativa.
As possíveis abordagens e temas para estudo em urbanismo são inúmeras. Podemos, inclusive, traçar um percurso temporal em que essas abordagens vão se diversificando, provavelmente como consequências da dificuldade em apontar um objeto único ou mais preciso, ou mesmo o fato de o objeto ser multifacetado. Como falar de cidades sem falar sobre geografia, política, movimentos sociais, arte, clima, economia, e tudo isso ao mesmo tempo? Essa dificuldade e complexidade é a premissa para a curadoria em Readings in Planning Theory de Fainstein e Campbell (2012).
Como recorte sobre a evolução das discussões urbanas apontadas, os autores seguem do final do século XIX para o século XX. Partem das utopias da virada do século, para a cidade máquina de morar modernista, a constatação da problemática dessa simplificação, e a conversão de uma imposição top down em um processo de mediação entre os diversos atores sociais interessados nessa ou naquela intervenção do território. É um percurso de revisões não apenas da missão, mas das bases teóricas do urbanismo, em que se percebe a necessidade de mais e mais dimensões, variáveis e atores envolvidos na constituição da cidade, e se buscam estratégias para atender essa percepção.
A revisão constante é natural da evolução científica. Descendo uma camada em profundidade, leituras tão diversas quanto Foucault (1999) em Vigiar e Punir e Bonsiepe (2011) em Design Cultura e Sociedade, nos permitem uma convergência interessante sobre o que seria conhecer alguma coisa. O conhecimento em Bonsiepe e o saber em Foucault, ao final, significam a possibilidade de provocar determinado fenômeno, orientar um sistema para um estado desejado. O conhecer certo sistema é ser capaz de (pré-)dizer como ele reage a quais estímulos, ou seja, qual o seu comportamento diante de certas condições às quais seja submetido.
Foucault (1999) trata de conhecer os mecanismos de controle social. Nessa mesma direção, no livro Políticas Públicas por Dentro, Boneti (2007) se propõe a investigar os mecanismos dessas políticas. As discussões apresentadas falam sobre o significado de poder, o que seria política pública, o jogo de força entre os agentes para o seu estabelecimento, eventuais efeitos negativos, a efetividade da política, e as relações entre essas políticas, poder e sua manutenção. Fica claro o uso das políticas públicas como maneira de atender os desejos do grupo no poder, como uma conciliação de várias vontades, via várias estratégias. Mais ainda, a política pública é uma maneira de manobrar a sociedade para onde o grupo no poder acha que seria melhor, e tomar as ações que considera que seriam as corretas de como chegar nesse lugar.
Claro que qualquer conhecimento nunca é completo ou exato, de modo que nem sempre o estado final é aquele desejado, por vezes sendo totalmente outro, inclusive o conhecimento em que se baseiam decisões políticas, bem como as urbanísticas. Essa diferença entre expectativa e resultado aponta a incompletude ou insuficiência do que se pensava conhecer, e a necessidade de um contínuo escrutínio do conhecimento acompanhado da sua constante atualização. A eficácia de previsão das reações possibilita o controle do que se conhece, o que permite o poder sobre o conhecido.
Duas notas são importantes aqui sobre o nosso entendimento: o conhecimento é uma representação do objeto, e, portanto, sempre parcial; a distância entre essa representação parcial e a realidade é proporcional à precisão (eficácia) do controle alcançado ou possível, e causadora do erro na previsão. Um maior ou menor acerto de previsão, ou controle, varia com a qualidade e adequação do conhecimento. Para as reflexões desta tese, usamos como equivalentes e de maneira indiscriminada os termos conhecer, saber, modelo, mecanismo, pressuposto, teoria, por entender que todos indicam representações que descrevem o funcionamento de um sistema, ou seja, como um fenômeno acontece, e implicam algum grau de predição em como este se comporta diante de certos estímulos.
Retomando a curadoria de Fainstein e Campbell (2012) do começo da discussão, ela aponta que práticos e teóricos do urbanismo sempre tocam, emprestam e adotam teorias ou trechos de teorias e metodologias de várias disciplinas afins e vizinhas, como economia, política, ciências sociais, geografia. Levantam uma série de questões sobre planejamento urbano e sua relevância e traçam a curadoria buscando responder essas questões, investigando desde raízes históricas, a quando se deve intervir, sua efetividade, questões éticas e processos. A natureza complexa, e, portanto, multidisciplinar, da disciplina dificulta a formulação de um arcabouço teórico próprio e consistente do urbanismo.
O percurso apontado pelos curadores mostra, em um resumo grosso modo, uma sucessão de teorias sobre o desenho do objeto (todas com um ideário mais ou menos completo), depois substituídas por estratégias de abordagem do processo, uma mudança para metodologias de participação popular (desta vez, um arcabouço mais aberto). Nessa discussão da participação, a expansão política de decisões de projeto, podemos entrever duas questões. Primeiro que a decisão coletiva implica uma ampliação da base de conhecimento e variáveis em que estruturar os projetos, como uma esperança de encontrar uma fundação mais sólida, digamos, que leve a consequências mais eficazes e eficientes. Num segundo momento, ao incluir um grupo na tomada de decisão, também se divide a responsabilidade pela consequência das decisões de projeto tomadas, tanto para o caso de dar certo (se atingir o objetivo do projeto) como para o caso de dar errado (não se atingir o objetivo).
dificuldades multifacetadas
Essas problemáticas não são muito diferentes das dificuldades apontadas por outros autores. Mahbub Rashid (2016) faz um recente levantamento das principais teorias urbanas ocidentais e as suas efetividades em The Geometry of Urban Layouts. Entre teorias e métricas sobre o urbano, ele as identifica sempre como insuficientes. Ainda no fim dos anos 70, Bailly (1978) já trazia essa reflexão em L´Organisation Urbaine, de como os modelos uni ou bi-dimensionais são constantemente insuficientes, sugerindo que uma abordagem a partir da teoria da complexidade poderia ser mais adequada.
Um exemplo relativamente contemporâneo está no artigo de Ewing e Hamidi (2015) em que apresentam resultados de 20 anos de pesquisa sobre consequências do desenho urbano. O debate original é o embate entre cidade compacta e a espraiada, buscando causalidades a partir da morfologia. Entretanto, o artigo expõe que nenhuma das problemáticas examinadas apresentava a relação causa-consequência apontada originalmente, e nem tinha a forma da cidade como suficiente para explicar o fenômeno. Em questões que variam da poluição às distâncias percorridas e além, a forma da cidade é apresentada com peso igual ou menor que outras características.
Apesar das reiteradas percepções de que a cidade é um objeto de complexidade maior do que a que se trata, os modelos teóricos tendem a uma simplicidade mecanicista, com adoção de complexidade apenas no processo de decisão (participativa). Parece existir uma simplicidade no Moderno que nos seduz até os dias de hoje, seja por pura inércia ou por um “conforto preguiçoso”, que podemos bem humoradamente deduzir extrapolando a navalha de Occam (entre mais de uma explicação, usa-se a mais simples). É mais fácil e viável diminuir as dimensões de um problema, quer dizer, simplificar, ou ainda, tratar com poucas variáveis, ao enfrentar uma questão. Entretanto, nem sempre isso corresponde à realidade, e a própria história da ciência mostra um aumento gradual de complexidade nas nossas explicações de mundo, o que não obrigatoriamente significa uma explicação mais difícil. Muitas vezes as explicações são mais fáceis apesar de mais complexas, e conseguem explicar uma quantidade maior de fenômenos. Essas geralmente envolvem uma quantidade maior de questões, variáveis ou parâmetros. É interessante notar essa complexificação.
O texto de Boneti (2007) parece uma constante tensão entre uma matriz Moderna de explicação dos fenômenos, ao puxar a disputa de poder estática entre dominados e dominantes, e uma matriz Complexa, quando aumenta a quantidade de atores como agentes de poder, e o dinamismo desses atores acomodados e reacomodados sob temas e discursos, aumentando a quantidade de dimensões no trato da questão. A matriz de pensamento Complexa é manifesta quando ele fala da quantidade desses agentes, inclusive com pesos diferentes. O mundo não é lá tão simples assim, ao que parece. Em boa parte das vezes, a tecnologia (enquanto teoria e enquanto artefato) ajuda nossa “preguiça”, facilitando ver e tratar quantidades cada vez maiores de dados. O limite da navalha de Occam anda mais complicado, em boa parte porque a tecnologia nos permite tratar essas explicações com o mesmo esforço que as mais simples anteriores. A tecnologia entra como parte do auto-reforço da ciência: quanto mais se sabe, melhor se pode ver que não se sabe e ver mais do que se sabe.
conhecimento e representação
Observações de Lakatos (1989) e Koen (2003) nos mostram que o que estamos chamando de teorias tendem a ser utilizadas como guias para tomada de decisão, seja na construção de artefatos, seja para intervenções com desejos de mudanças nas realidades. Kuhn (2017), inclusive, defende que a sucessão das teorias não é obrigatoriamente uma evolução sequencial da qualidade das mesmas, mas muitas vezes uma disputa de popularidade entre elas. Por vezes, uma teoria só é superada quando seu proponente morre. Existe uma concorrência entre teorias: concorrência temporal, de existirem ao mesmo tempo, e concorrência de popularidade. Um determinado pacote de teorias é utilizado enquanto for popular e ou pragmaticamente relevante, quer dizer, tão ou mais efetivo que outras referências nos processos de decisão.
Essa é uma conversa muito parecida e evidente na discussão entre o Moderno e o Pós-moderno, que se apresenta muitas vezes a partir de um antagonismo, seja de continuidade ou reação. É uma oposição entre um pacote de ideia total e verdade(s) essencial(s)/absoluta(s) do Modernos versus o Pós-moderno fragmentado, esquizofrênico, mutável, com várias ideias simultâneas e distintas circulando na sociedade (HARVEY, 1993). Noves fora demais questões, essas são posturas radicalmente diferentes. Por trás das oposições óbvias unidade/plural e estabilidade/dinamismo, existe uma outra instância para a qual gostaríamos de chamar a atenção, e que no fim, seria aquele disputado por esses antagonismos: são diferentes ontologias teóricas, a visão ou compreensão geral de como o mundo funciona (de cada uma dessas abordagens). O que está em xeque nessa “disputa” é qual a narrativa ou discurso (qual base ontológica) usar para falar sobre como a realidade está ordenada e se processa, levando eventualmente a uma determinada postura diante dela. Essa sucessão de narrativas, discursos, ou ainda, descrições da realidade faz parte da própria história da humanidade.
A respeito da sociedade contemporânea, na segunda década do séc. XXI, Ascher (2010) caracteriza a nossa como uma sociedade do risco. O risco, nesse caso, discorre sobre a previsibilidade de determinado acontecimento, e sobre a busca por diminuir os prejuízos a partir deste desenvolvimento. Mais uma vez, isso não é exatamente uma novidade. O que muda na atualidade é a ênfase, ou consciência, ou talvez ainda, a racionalidade buscada sobre esse risco. Essa relação sempre se deu com o seu cálculo, ou seja, a sua previsibilidade. E essa previsibilidade está diretamente relacionada com a compreensão do fenômeno em questão, no caso, da compreensão da realidade.
A história do pensamento humano pode ser contada a partir da sucessão desses modelos de compreensão do mundo, buscando uma maior previsibilidade dos eventos decorrentes das nossas ações, ou, diminuição do risco, ou ainda, um maior controle sobre os eventos. A humanidade partiu de explicações mitológicas do mundo, em que o controle do risco se dava a partir de apascentar a ira ou buscar os favores de deuses, para a sujeição a um único deus, para entender uma perenidade da natureza regida por leis racionalizáveis, que se pode aprender e agir de acordo (controlar). Criou uma sucessão de modelos mais e mais aproximados de uma compreensão de realidade, ou pelo menos capazes de descrever com maior precisão cada vez mais aspectos dela.
As explicações se mantêm enquanto satisfazem a necessidade de explicação, pelo menos parcialmente, ou até aparecer uma melhor. Mudanças no objeto (evolução dele), ou na sua observação (outras ferramentas) tendem a produzir novas explicações, sejam mais simples ou mais sofisticadas, em geral mais precisas e com maior poder de explicação. Alguns elementos contribuem para esse desenvolvimento. Se de um lado está o modelo filosófico, do outro, estão os artefatos tecnológicos. Estes, por sua vez, são desenvolvimentos do conhecimento vigente, conquanto possibilitadores de novos conhecimentos.
Nem sempre essas novas visões, chamemos assim, ou tecnologias, estão criando novas realidades, ou novos objetos. Muitos deles já estavam presentes, já se interagia com eles, mas não se sabia exatamente como. Alguns aspectos só puderam ser vistos depois de inventados certos aparatos tecnológicos, e outros depois da proposição de certas bases teórico-filosóficas. Quatro planetas do sistema solar eram conhecidos a olho nu, os micróbios só foram descobertos a partir do microscópio e Urano com o telescópio, já Netuno foi descoberto por ser solução teórica para perturbações na órbita de Urano. O microscópio não criou as bactérias, elas já estavam produzindo queijo, vinho, iogurte, e causando doenças. A mecânica quântica não inventou novas características dos átomos, mas permitiu compreender e manipulá-los.
Do ponto de vista pragmático de Koen (2003), talvez a efetividade do uso das teorias urbanas não esteja muito diferente daquela do uso de utopias ou do correr do acaso. A dimensão e a natureza complexa do fenômeno, nossa capacidade de observação (no tempo e no espaço), parecem comprometer a possibilidade de verificações de falseabilidade, o que impediria a ideia de uma ciência sobre o urbano conforme posta por Popper (2013). Uma pergunta que se põe é: os pressupostos que orientam as decisões nos projetos de intervenção urbana têm sido eficazes? Talvez essa deva ser uma pergunta permanente para qualquer ciência.
Retomando o pensamento sobre a compreensão da realidade, no caso, de um evento, e sua previsibilidade, é interessante notar como Gui Bonsiepe (2000) hierarquiza dados, informação e conhecimento, colocando conhecimento como a capacidade da informação organizada predizer acontecimentos. O que nos indica que com melhor conhecimento, um modelo mais adequado permite previsões mais acertadas. Para efeitos da nossa sociedade, significa diminuir o risco.
Duas questões devem ser levantadas aqui. Embora uma máxima de infalibilidade da ciência pareça crível, ela não é exatamente coerente com a própria história da ciência ocidental. A ciência sempre se baseou na substituição de teorias por outras mais adequadas, com mais ou menos pudores nessas substituições. A tradição científica se consolidou num método de crítica e teste de robustez das teorias. Essa característica é extremamente defendida e caracterizada por Popper. Ele percebe as teorias como explicações possíveis, e válidas enquanto se mostram verdadeiras. Popper discorre e desenvolve também sobre a importância de teste e validade, desenvolvendo o critério de falseabilidade, como o de validação (temporária) de uma teoria: ela vale se falseável e enquanto não for verificada como falsa.
Mais pragmáticos e menos radicais, Koen (2003) e Lakatos (1989) reconhecem essa validação das teorias, mas defendem seu uso enquanto forem úteis, que é a segunda questão que gostaríamos de apontar. Isso significa o efeito pragmático daquela teoria: enquanto ela for útil para explicar e orientar com relação certo fenômeno, deve ser usada. Existe uma percepção de que, mesmo que não sejam inteiramente verdadeiras, as teorias são pelo menos parcialmente corretas, explicam pelo menos parte da coisa em questão e aumentam as chances de acerto. A importância de se conhecer, e a utilidade disto, está justamente em que, explicando corretamente, se pode tomar decisões de acordo com o funcionamento, de modo a ter resultados desejados. Por exemplo, conhecer o regime de chuvas e os pontos de alagamento permite que se façam barragens e sistemas de drenagens capazes de neutralizar ou pelo menos minimizar os prejuízos que podem acontecer. Existe uma consciência por parte da ciência de que ela não é a explicação completa ou perfeita, mas é parcial, e a melhor até o momento, ou pelo menos a mais efetiva, no sentido de trazer resultados mais eficientes. Aquele conhecimento (uma “verdade” temporária) nos trouxe até aqui.